Daqui a uma hora ele chega. Não deu tempo de consertar
o esfolado da minha unha e de esfoliar decentemente os pêlos
encravados. Esfolado, esfoliado. Tudo parece música e rima mas é só
porque você chega em uma hora. Tem um carro que passa lá longe, enquanto
eu tento abrir os olhos e encarar esse dia em que você chega. Esse
carro não sabe, mas foram mil anos abrindo os olhos e ouvindo carros e
ouvindo ruas e não ouvindo a sua voz. E agora a sua voz existe e você
chega em uma hora.
Não estou pronta. Minha barriga dói. Eu tenho vontade de vomitar. Eu não
consigo comer de tanto medo que eu estou sentindo. Eu quase desmaiei
agora de manhã, porque pra piorar está calor. Não lido bem com calor.
Não lido bem com nada que não seja eu em minha bolha arejada de
imaginações. Mentira, não lido bem com minha bolha arejada de
imaginações também. Não lido bem com nada. Não deu tempo de virar
mulher. A hora que ele aparecer no desembarque do aeroporto, com sua
cara de homem, com sua voz de homem, eu vou ter vontade de pedir que ele
volte de onde veio e espere mais cem anos. Porque não deu tempo de eu
virar mulher. Eu vou ter vontade de pedir que ele me carregue no colo
até a casa da minha mãe e me entregue pra ela. Eu queria tomar sopa na
casa da minha mãe. Eu lembrei agora que minha mãe me dava Sustagem
quando eu ficava assim, tão assustadoramente encantada pelo mistério das
coisas. E ela temia que eu desintegrasse. E agora? Como faz quando se é
adulta? Qual é a sustagem de agora para que eu não desintegre? Como é
que se ama com um corpo de trinta e três anos se por dentro eu tenho
cinco anos e estou tremendo, apavorada, pressentindo o estrago que as
coisas de verdade podem causar. Por que eu chamo de estrago quando sei
que, na verdade, estrago é o que as coisas que não são de verdade
causam. Eu tenho tamanho pra suportar o tamanho das coisas de verdade?
O amor chega em uma hora e eu ainda não consegui
comer, escolher a roupa, arrumar minha franja, decidir se já posso
amar. O amor chega em uma hora e vai quebrar meu gesso mas eu não decidi
se os ossos já estão bons o suficiente. Mas ele vai chegar com trinta
martelos e eu vou estar esperando, forte e decidida, pra receber a
porrada. E o ar que vai entrar. E mais dor. E o ar que vai entrar. E
quem sabe então alguma felicidade, já que fui corajosa. Quem sabe a
felicidade seja a harmonia entre a dor e o ar que entram pelos poros que
temos coragem de abrir? E quem sabe só o amor seja o martelo possível?
Escrevo isso e choro. Porque quero tanto e não
quero tanto. Porque se acabar morro. Porque se não acabar morro. Porque
sempre levo um susto quando te vejo e me pergunto como é que fiquei
todos esses anos sem te ver. Porque você me entedia e dai eu desvio o
rosto um segundo e já não aguento de saudade. E descubro que não é tédio
mas sim cansaço porque amar é uma maratona no sol e sem água. E ainda
assim, é a única sombra e água fresca que existe. Mas e se no primeiro
passo eu me quebrar inteira? E se eu forçar e acabar pra sempre sem
conseguir andar de novo? Eu tenho medo que você seja um caminhão de luz
que me esmague e me cegue na frente de todo mundo. Eu tenho medo de ser
um saquinho frágil de bolinhas de gude e de você me abrir. E minhas
bolhinhas correrem cada uma para um canto do mundo. E entrarem pelas
valetas do universo. E eu nunca mais conseguir me juntar do jeito que
sou agora. Eu tenho medo de você abrir o espartilho superficial que
aperto todos os dias para me manter ereta, firme e irônica. Minha
angústia particular que me faz parecer segura. Eu tenho medo de você
melhorar minha vida de um jeito que eu nunca mais possa me ajeitar,
confortável, em minhas reclamações. Eu tenho medo da minha cabeça rolar,
dos meus braços se desprenderem, do meu estômago sair pelos olhos. Eu
tenho medo de deixar de ser filha, de deixar de ser amiga, de deixar de
ser menina, de deixar de ser estranha, de deixar de ser sozinha, de
deixar de ser triste, de deixar de ser cínica. Eu tenho muito medo de
deixar de ser.
Agora é menos de uma hora. Você vai chegar e
automaticamente minha agenda de milhares de regras e horários e
controles vai desaparecer. E eu vou ficar apavorada porque só o que eu
tenho é o contorno mentiroso que eu dou para os meus dias. E você,
porque me abraça e me dá outro desenho, é o vilão da minha vida
programada. Você é o tufão de oxigênio que invade meu nariz mas, porque
estou com tanto medo, mais parece falta de ar. Agora é menos de menos de
uma hora. Preciso terminar esse texto. Mas eu tenho medo, sobretudo, de
terminar esse texto. Sobre o que eu vou escrever se você for melhor do
que esperar por você?
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